domingo, 2 de dezembro de 2012

Geração exterminada pela violência

Quase a metade das mortes violentas ocorridas em Juiz de Fora este ano - 38 de 85 homicídios - tem como vítimas jovens, a maioria negros e pobres

Por DANIELA ARBEX


 

"Papai, te amo. Descanse em paz." A frase escrita de caneta na barriga de uma grávida de oito meses retrata um quadro da realidade de Juiz de Fora. A lente da câmera, no entanto, é incapaz de captar o que está por trás da imagem divulgada, em agosto deste ano, nas redes sociais. Trata-se de uma gestante de 16 anos homenageando o pai do bebê, um jovem de 20 morto com cinco tiros no Bairro São Judas Tadeu, Zona Norte, 60 dias antes de a foto ser postada no Facebook. Órfão da violência que tem dizimado a população jovem da cidade, o filho que veio ao mundo em setembro não é o único a fazer parte de um grupo cada vez maior de nascidos sem pai. Das 85 vítimas de mortes violentas na cidade entre janeiro e novembro deste ano, 38 têm menos de 25 anos de idade, sendo que a metade dos garotos atingidos foi encontrada com sinais de execução. A Região Norte é a mais afetada, com destaque para Monte Castelo, Esplanada e Jóquei, considerados lugares da cidade onde os jovens têm menos chance de viver.
Durante três meses, a Tribuna buscou os rostos por trás dos números, descortinando a dor de famílias cujos filhos morreram ou puxaram o gatilho. A série de matérias que se inicia hoje pretende mostrar como esse cenário foi sendo desenhado nos últimos dez anos e por que as áreas mais afetadas são também as que menos têm a oferecer em relação à educação, ao lazer e à cultura. As reportagens, que deram voz às comunidades e ouviram ainda especialistas de todo o país, constatam que a questão racial não é contemplada nas políticas públicas de enfrentamento dos fatores de risco da violência letal no Brasil, apesar de as vítimas terem perfil claramente identificado: adolescentes negros, de classe média baixa e do sexo masculino. A chance de um jovem negro ser assassinado é três vezes maior do que a de um branco. Mas nem sempre este registro consta na ocorrência policial. Em Juiz de Fora, de 17 rapazes mortos que tiveram a cor apontada no boletim, nove são negros, seis, brancos e dois, pardos. Mapa da Violência 2012 confirma que a taxa de homicídios de pessoas negras no Brasil é maior do que de países em situação de conflito armado. "O genocídio no Brasil é social, racial, direcional. Quem morre tem cor", afirma o consultor em direitos humanos e advogado Renato Roseno.
 Como vou criar meu filho sem pai? I., 16 anos
Armas
Outra questão fundamental é a falta de controle das armas e a facilidade com que meninos têm acesso a elas. Revólveres e pistolas são responsáveis por 57 dos 85 óbitos ocorridos no município. Quando a apuração da série foi iniciada, em setembro, havia 54 vítimas. De lá para cá, outros 30 crimes violentos foram cometidos. Aliás, o ano de 2012 é recordista de casos. Até agora, são 32 mortos a mais que no ano passado. O silêncio das autoridades e da sociedade, no entanto, tem conseguido abafar o estampido dos tiros. Até quando?

 

Mãe ainda paga prestação de tênis de filho morto

Moradora do Monte Castelo, a doméstica Maristela Aparecida Estêvão, 47 anos, é a imagem da dor que tem atingido essas famílias. O filho dela, Jefferson Luiz da Silva Fernandes, de apenas 14 anos, foi morto a tiros, em agosto, após uma briga durante uma festa popular realizada no bairro. Cinco horas antes, ele estava em casa, conversando com ela sobre o evento. Empolgado, procurou no armário a melhor roupa. Deixou a residência de apenas dois cômodos calçando o par de tênis de R$ 343 que a mãe havia acabado de comprar em seis prestações. Apesar de o calçado custar a metade do salário dela, a mulher analfabeta, que anda de chinelos de dedo, sempre fez questão de atender aos pedidos do garoto, ávido por consumir vestuário de marca. "Queria que ele ficasse arrumadinho. Dava as coisas para ele, para que não mexesse nas dos outros. Nunca deixei faltar nada: roupa, iogurte, biscoito, fruta, chocolate", revela.
No imóvel precário de apenas uma janela, localizado na ocupação da Rua Expedicionário Antônio Novaes, Maristela mostra, ainda, o diploma de Jefferson, que, durante seis anos, foi aluno do projeto social "Bom de bola, bom de escola". Ao deixar o programa, ganhou a rua. Ultimamente, nem a escola conseguia atraí-lo. A mãe, que trabalha em dois empregos, não tinha tempo de andar atrás dele. No dia da festa, ela pensou em acompanhar Jefferson, mas estava tão cansada que adormeceu. Acordou, de madrugada, com um chamado. "Corre, dona Estela. O Jefinho foi baleado", disse um colega do filho. Ao chegar no local dos tiros, viu uma poça de sangue, mas ele não estava lá. Levada para o HPS, ouviu, na portaria, que o adolescente estava bem. Mas a sensação de alívio durou pouco, já que o sobrevivente não era o seu menino. Ao ouvir a confirmação do óbito do caçula de três irmãos, a doméstica não acreditou. Correu para o necrotério, onde, desta vez, encontrou o filho. "Ele estava na maca, com os olhos abertos, cheios de sangue, o corpo ainda quente. Essa dor que carrego no peito não vai me deixar", diz, em prantos.

Filho arrependido
Em um local da cidade distante dali, outra mulher chora. A faxineira M., de 33 anos, que trabalha em dois empregos para manter a família, é mãe do adolescente A., de 16, que assassinou Jeferson. Escondida, com medo de retaliação contra os dois filhos pequenos, ela relutou em dar entrevista. Meia hora depois, aceitou falar sobre a dor que também a afetou. Antes de começar a conversa, o atual companheiro, o pedreiro L., saiu em defesa dela. "Ela só é mãe. Não apertou o gatilho." M. concordou com um aceno de cabeça, embora afirme que preferia ter morrido no lugar do garoto do qual seu filho roubou a vida. "Só Deus sabe o que estamos passando. Meu filho está muito arrependido, porque ele e Jefferson estudaram juntos. Mas, antes de atirar, ele apanhou muito dos meninos do Monte Castelo. Teve o nariz e o rosto cortados por garrafada e um dente arrancado, tudo constatado em exame de corpo de delito. Antes ele tivesse voltado para casa todo machucado, mas fosse apenas a vítima e não o autor. Não criei meu filho para fazer o que ele fez. Nunca deixei meus meninos jogados. Fiz até o que não podia por eles", revela, dizendo que A. e o outro filho mais velho foram alunos do "Pequeno jardineiro", outro projeto social da Prefeitura.
"Quantas vezes, eu deixei o serviço para participar de reunião no programa social. Mas não adiantou. Nenhum dos dois conseguiu vaga no mercado de trabalho. Não aguentava mais ver meus filhos parados na praça. Pedi ajuda ao Juizado de Menores, mas não consegui. Ia a pé para o trabalho para pagar curso de computador para eles. Tudo em vão." Além de A., o filho mais velho da faxineira está acautelado no Centro Socioeducativo por tentativa de homicídio. Os dois cresceram longe do pai, que foi preso quando eles eram pequenos. "Sempre os imaginei no quartel. Agora isso acabou. Ao matar o Jefferson, meu filho destruiu a própria vida. Peço perdão à mãe dele, mas também estou sofrendo muito. A gente quer o melhor para um filho. Todo dia, penso: meu Deus, onde foi que eu errei?"
Políticas públicas não dialogam com as vítimas
As atuais políticas públicas de prevenção não dialogam com as principais vítimas de homicídio do país. Essa é a conclusão que a coordenadora da vertente Direitos Humanos do Observatório das Favelas, Raquel Willadino, do Rio de Janeiro, chegou, ao aferir o resultado da pesquisa realizada pela entidade em 11 regiões metropolitanas entre 2009 e 2010. Os números apontam que a chance de um jovem do sexo masculino ser morto é 14 vezes maior do que uma menina; de um negro, é três vezes superior a de um branco, sendo que o risco de um adolescente ser vítima de arma de fogo é seis vezes superior ao de outros meios.
"Isso mostra que, apesar de o perfil das vítimas ser claramente identificado - jovem, negro, do sexo masculino, morador da periferia, em geral, com baixo índice de escolaridade -, o foco das políticas não prioriza nem as dimensões de gênero, nem de raça. Dos 160 programas de prevenção que mapeamos, 16% tinham algum critério relacionado a gênero para a definição do público-alvo, e só 8% tinham critérios relacionados à raça. Hoje há um quadro de verdadeiro genocídio dessa população. Por que a juventude negra está morrendo nos últimos 30 anos no país, sem que isso produza um nível de mobilização consistente na sociedade? O silêncio diante dessa escalada da violência letal que afeta a juventude negra fala da falta de valor que está sendo atribuída à vida desses meninos."
A hierarquização da vida é outra questão citada por Raquel. Tratam-se das vidas que valem menos do que outras, no caso dessas vítimas que, além de negras, são pobres. Talvez por isso essas mortes continuem sendo vistas com indiferença.

Desconectados da escola
A professora Irene Rizzini, diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância da PUC-Rio, acrescenta mais um dado: quase 100% dos meninos afetados pela violência que passaram pelo sistema socioeducativo, sendo autores ou vítimas, estão desconectados da escola ou muito atrasados em sua escolaridade; têm imensas fragilidades no contexto familiar e trajetórias marcadas pela desigualdade desde os primeiros anos de vida. "Quando a família não dá conta, a escola não dá conta, e a sociedade está dizendo que não dá conta, temos que parar e rever o que está acontecendo. É preciso olhar a trajetória desses meninos desde o início da vida, para fortalecer o sentido de pertencimento da criança no seu contexto familiar e comunitário, oferecendo formas de apoio aos adultos que estão no entorno dessa criança. Para isso, é preciso ir além dos projetos que não têm continuidade e partir para um conjunto de políticas públicas intersetoriais que dialoguem entre si. Temos grandes desafios, mas já existem soluções apontadas no país. Precisamos buscá-las."
A deputada federal Érica Kokay (PT), da Frente de Defesa Parlamentar da Criança e do Adolescente, é enfática: "É preciso haver prioridade orçamentária e qualidade nas políticas públicas, porque não dá mais para suportar políticas pobres para os pobres, feitas para que eles não se esqueçam de sua pobreza e permaneçam nesta condição."

Sobrevivente de espancamento 'vegeta' em hospital

A cozinheira R., 41, vive um pesadelo há 90 dias, desde que o filho de 16 anos foi 'enterrado vivo'. O adolescente da Zona Sudeste, segunda da cidade em relação ao número de jovens mortos, foi brutalmente espancado no início de setembro na saída de um baile funk realizado no Centro. Seis jovens o atacaram, tornando impossível qualquer defesa. Mesmo no chão, eles continuaram chutando a cabeça do adolescente, de acordo com depoimento de testemunhas. Os autores tinham tanta certeza que ele estava morto, que P. foi encontrado nu e com papelão cobrindo seu corpo. Mas não se tratava de um cadáver, pois o garoto sobreviveu. No entanto, há 62 dias, ele vegeta numa cama de hospital.
Não fala e nem consegue se mexer do pescoço para baixo, alimentando-se por sonda. Passados mais de 50 dias em coma, ele foi levado para o quarto da unidade hospitalar. Já respira sem a ajuda de aparelhos, mas é 100% dependente de cuidados. Os golpes provocaram lesões profundas na região da cabeça, e nem os médicos sabem dizer se há alguma chance de o skatista voltar a andar. "Ele saiu para essa festa e não voltou. Só está vivo por milagre de Deus, mas, desde então, eu vegeto junto com ele", contou R.
Ela disse, ainda, que o filho abandonou a escola na oitava série e, na tentativa de mantê-lo longe da rua, comprou um computador pago com empréstimo feito numa cooperativa. "Apesar de eu ser pobre, eu dei o computador. Depois, ele queria o Playstation 1, eu dei. Acabei de pagar, ele quis o 2, comprei com o dinheiro das minhas férias. Lá dentro, no quarto, ele tem televisão, tem som novo. Dizia que não ficava em casa, porque não tinha internet. Mandei colocar. Quando ele parou de usar o skate, abandonou o trabalho, a escola, ajoelhei nos pés dele e chorei: meu filho, para com isso, não vai para rua, a gente só tem dois amigos: a mãe e Deus. Mas ele não me ouvia."
R. se separou do pai de P. quando o menino tinha 1 ano de idade. O sonho do garoto era conhecer o pai. Por ironia do destino, desde que o agricultor L. soube da violência, viajou para Juiz de Fora, mantendo-se ao lado do leito do filho por todos esses dias. "Talvez, se eu estivesse aqui, nada disso teria acontecido. Me arrependo muito", chora. Para a cozinheira, a cidade precisa acordar. "É muita crueldade o que fizeram com ele. Todos os finais de semana acontece a mesma coisa com o filho de outras mães e ninguém faz nada, porque é pobre matando pobre. Isso precisa mudar."

Órfão da violência
Quando a notícia da gravidez precoce de I. foi confirmada, H., 19 anos, saiu para comemorar. A namorada de 15 anos teria um filho seu e, mesmo que isso implicasse em gastos e responsabilidade, ele daria um jeito. No começo, a mãe da menina não queria o relacionamento. Além de quatro anos mais velho do que a única filha, o rapaz estava envolvido com o tráfico de drogas na Zona Norte. Ela bem que tentou impedir que eles continuassem se vendo, mas a adolescente e o rapaz fugiram para São Paulo, de onde ela voltou grávida. Com um neto a caminho, a avó de 33 anos resolveu aceitar o namoro com medo de perder a filha.
De volta a Juiz de Fora, o pai do bebê visitava I. todos os dias. Quando o sexo do neném foi descoberto, um menino, ele ficou ainda mais ligado à adolescente. Mas a promessa de formação de uma família e da saída do mundo paralelo do crime nunca se concretizou. Aos 20 anos, H. foi morto com cinco tiros numa emboscada no Bairro São Judas Tadeu. Entrou na área considerada 'território do inimigo' para comprar uma moto, quando foi surpreendido. A namorada do rapaz conta que o autor dos disparos também é jovem e já teria apanhado da gangue do bairro onde ela mora, embora H. não tivesse participado da briga.
Minutos antes de ser assassinado, H. havia pedido à sogra para bordar uma toalha com o nome do neném que ainda não havia nascido. "Foi um choque. No começo, eu pensava: como vou criar meu filho sem o pai dele? Enquanto ele estiver pequeno, vou dizer que o papai está no céu. Mas, quando ele crescer, vou ter que contar a verdade, porque, se ele souber na rua, pode ser muito pior. Quero sair daqui, pois tenho medo que queira vingar o pai. Vou criá-lo ensinando o lado bom, porque não quero que aconteça com ele o mesmo que ocorreu com o pai."

Fonte: Tribuna de Minas

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