domingo, 24 de junho de 2012

QG é apontado como palco de tortura

Práticas de terror físico e psicológico no Quartel General da 4ª Região Militar são relembrados por presos políticos que ficaram detidos na unidade

Por DANIELA ARBEX E TÁSCIA SOUZA
Na versão oficial, Juiz de Fora foi o palco onde aconteceu a trama do golpe militar de 1964. Desde a semana passada, no entanto, quando veio a público o depoimento da presidente Dilma Roussef sobre os bastidores da tortura na cidade, os porões da ditadura deixaram a invisibilidade. As incômodas revelações trouxeram à tona outros rostos e nomes desconhecidos que somam centenas de depoimentos já analisados pela Comissão Especial de Indenização às Vítimas de Tortura em Minas (Ceivt). As narrações colocam o município entre os principais endereços de violência cometidas no país sob a custódia do estado. Além de Dilma, juiz-foranos que já receberam a indenização da Ceivt revelaram detalhes da rotina no Quartel General da 4ª Região Militar, o QG, para onde eram encaminhados presos políticos de todo o país à espera de julgamento. A Tribuna teve acesso a relatos de humilhação atribuídos ao mesmo local no qual a presidente aponta ter sido submetida a sessões de espancamento. As declarações colocam Juiz de Fora no alvo da Comissão da Verdade.
O professor Colatino Lopes Soares Filho, 63 anos, está entre os ex-militantes que declaram ter sido submetidos a tortura física e psicológica no QG, onde foi mantido por quase dois meses após ser preso, em 1968, sob a acusação de distribuir jornal de conteúdo subversivo. Com então 19 anos, Colatino respondia pela presidência da União Juizforana de Estudantes Secundaristas (Ujes), sendo um dos membros da Corrente, dissidência do PCB. Enquanto sua família foi informada que ele havia sido morto por "terroristas", o jovem permanecia incomunicável no QG. O desaparecimento do estudante ganhou repercussão nacional ao ser noticiado pelo Jornal do Brasil. "Fiquei dois meses no QG e, nos sete primeiros dias, fui mantido incomunicável. Lá, me colocaram nu durante várias noites, porque achavam que eu tinha ligação com o grupo do Carlos Marighela (líder da Ação Libertadora Nacional - ALN) e que eu pudesse saber onde ele estava. Primeiro, fui mantido na cela da Polícia do Exército, depois me levaram para a cela da frente (o corpo da guarda), onde tive que dormir no chão. Meu advogado, Winston Jones Paiva, chegou a solicitar que a cama que existia lá fosse colocada de volta. Os interrogatórios ocorriam à noite e, como estávamos ao lado do museu (Museu Mariano Procópio), podíamos gritar à vontade que ninguém ouviria. Enquanto estava sendo interrogado, levei uma correntada no rosto, além de ter tomado choques na região genital. Também passei pelo pau de arara. Fiz 20 anos no QG e 21 na Penitenciária de Linhares", revela o professor, que depois de Linhares foi transferido para Ribeirão das Neves.


Socos, chutes, choques e golpe do 'telefone'

Do mesmo grupo que Colatino, Antônio Rezende Guedes também foi levado para o QG. Denunciado pela Procuradoria Militar por crime contra a segurança nacional, Guedes foi preso em agosto de 68 com outros quatro jovens, depois que agentes da Polícia Federal encontraram na casa de um deles, José Salvati Filho, panfletos sobre luta armada e textos escritos por Ernesto Che Guevara, além de cópias de jornal produzido por Rogério de Campos Teixeira e distribuído por Colatino Lopes Soares Filho e Rodolfo Troiano, que mais tarde foi morto na guerrilha do Araguaia. Até o momento de sua prisão, Guedes se dividia entre a Faculdade de Engenharia Mecânica de Uberaba e o movimento estudantil em Juiz de Fora. No documento enviado à Comissão Estadual, em março de 2001, ele alegou ter sido submetido a diversas sessões de tortura que resultaram na perda de dois dentes incisivos, de um molar e na perfuração do tímpano, conforme documento publicado hoje pelo jornal (ver arte). Parte das agressões teriam ocorrido no QG, segundo declarou. Indenizado pela comissão, em 2002, Guedes, que era professor da UFJF, faleceu há dois anos. Em 2002, porém, quando sua história foi revelada, ele afirmou à Tribuna que sua vida foi destruída aos 19 anos de idade. "Este regime de abuso e autoridade desgraçou uma geração inteira. Muitos de nossos companheiros enlouqueceram. Tive a vida estraçalhada e sinto que sou marginalizado até hoje", disse na ocasião.
O granjeiro José Salvati Filho, hoje com 65 anos, ligado a Colatino e a Guedes, também foi levado para o QG em 1968, quando a Polícia Federal encontrou em imóvel que ele havia alugado, no Bairro Santa Luzia, panfletos distribuídos durante as passeatas de oposição à repressão. Ficou cerca de 30 dias preso no Exército, onde afirma ter ficado sob a mira de uma baioneta e sofrido com o método 'telefone' (golpe aplicado no ouvido com as mãos meio fechadas), fugindo para São Paulo antes de terminar o processo.
Lá integrou a Ação Popular Marxista-Leninista (AP), sendo preso por agentes do Deops/SP, onde sofreu choques elétricos e teve uma vértebra quebrada durante uma sessão de espancamento. "Sofri tortura no pau de arara e na cadeira do dragão, que era de chapa e estava ligada a um aparelho de televisão sem amperagem. Fui massacrado e tive uma vértebra fraturada." Em Juiz de Fora, Salvati ficou preso em Linhares entre 72 e 73. Na última prisão, em 1975, foi preso com a ex-mulher e a filha de três meses. "Temos o compromisso de contar a história do Brasil como ela é", disse.
O relato de Luiz Rogério Avelino Brandão é semelhante ao de Colatino. Ele era funcionário do Correio, em 1966, quando foi acusado de subversão, embora não estivesse ligado a partido político. "No QG, apanhei pelo método 'telefone', recebi choques na região genital e fui humilhado durante 15 dias. Tinha 21 anos e, apesar de ter sido absolvido por falta de provas, nunca mais consegui emprego formal. Minha vida foi um inferno", revelou Avelino à comissão mineira, em 2002, após ter sua história revelada pela Tribuna. Ele foi o primeiro da cidade a receber a indenização de R$ 30 mil. Faleceu quatro anos depois de ter o direito reconhecido.
O comando da 4ª Brigada de Infantaria Motorizada foi procurado, mas a Tribuna foi informada que deveria procurar a instituição em Brasília. A assessoria da capital federal, no entanto, não retornou o contato.

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