Policiais militares de Juiz de Fora
relatam sofrer pressão por parte de superiores para mascarar a natureza
das ocorrências, de forma a reduzir as estatísticas de crimes violentos.
A maquiagem dos Registros de Eventos de Defesa Social (Reds, o antigo
BO) vem sendo denunciada pela Tribuna há dois anos. Agora, pela primeira
vez, militares se dispuseram a revelar o esquema: "Há uma pressão
psicológica muito grande para que as naturezas sejam mudadas. O policial
sabe que a ela não corresponde àquele crime, mas se vê obrigado a
registrar da forma errada, sob pena de sofrer represálias", denuncia um
PM lotado no 2º Batalhão, responsável pelo Centro e regiões Leste,
Sudeste e Nordeste. Outro militar, este do 27º Batalhão, responsável
pela zonas Sul, Norte e Cidade Alta, detalha o procedimento: "Você está
de serviço, na viatura ou no posto policial, e se depara com uma vítima
que relata ter sido roubada. Ela diz que o cidadão apontou a arma e
exigiu o dinheiro. Roubo, certo? Não. Você passa a situação, via rádio,
para a CPU (Coordenação de Policiamento da Unidade) ou para o oficial, e
este determina que você registre como extorsão."
Esta situação do roubo à mão armada registrado como extorsão é mais
comum porque este crime não integra o Índice de Criminalidade Violenta
(ICV), elaborado pelo Estado e apresentado à sociedade como forma de
medir a violência. Pelo mesmo motivo, também há casos de tentativa de
homicídio sendo tratados como lesão corporal e homicídio consumado sob a
alcunha de encontro de cadáver. As pressões pela maquiagem de BO teriam
quatro origens: as companhias, os batalhões, o Centro de Operações da
PM (Copom) e a CPU. "São várias as forças que tentam encobrir os
registros", reforça o policial do 2º Batalhão.
Além de refletir na queda do ICV, o mascaramento dos BOs teria como
objetivo o recebimento do prêmio por produtividade, oferecido pelo
Governo do estado aos funcionários públicos que atingem as metas
estabelecidas pela política de Acordo de Resultados. "Esse valor
geralmente é pago em outubro e representa cerca de 80% do salário do
militar. Para a PM, o que gera o prêmio é a redução do ICV e o aumento
de apreensões de armas de fogo e de operações", diz um dos PMs.
Revoltados, os militares, que já lidam com a falta de estrutura e
baixos salários pagos às patentes inferiores, enxergam, no mascaramento
dos Reds, mais um desestímulo à atividade policial. "Muitos estão
indignados pela forma como isso tem acontecido. Afinal, quem assina o
BO, ou seja, o responsável pela ocorrência, é o PM que está na rua e não
quem determinou que a maquiagem seja feita."
PM nega orientação
Em nota, a assessoria de comunicação da 4ª Região da PM (RPM) afirma
desconhecer e abominar qualquer orientação para mascarar ocorrências, e
garante: "o preenchimento do Reds é de total responsabilidade do militar
empenhado e, cabe a ele, mediante sua análise do fato em concreto,
estabelecer a natureza da ocorrência atendida, devendo se valer da
Diretriz Auxiliar de Operações, documento doutrinário da corporação, que
orienta a devida codificação de acordo com o enunciado do diploma legal
correspondente".
Nova metodologia
Este ano, o Governo estadual mudou a metodologia do ICV. Atualmente,
consideram-se crimes violentos os homicídios tentado e consumado, o
roubo, o sequestro ou cárcere privado, os estupros tentado e consumado,
além da extorsão mediante sequestro. Curioso é que, em Juiz de Fora, os
dados oficiais, em geral, apontam queda da criminalidade. Entre 2010 e
2011, por exemplo, o ICV caiu 9,6% no município, ao passo que, em Minas
Gerais, aumentou 10,8%, segundo a Secretaria de Estado de Defesa Social
(Seds). Na última quarta-feira, a 4ª RPM informou que o número de crimes
violentos em Juiz de Fora caiu de 618 para 542, nos sete primeiros
meses deste ano, comparados com o mesmo período de 2011.
Informações desencontradas nos boletins
Durante um mês, a Tribuna investigou centenas de boletins de
ocorrência elaborados pela PM e descobriu que uma das mortes mais
brutais e de maior repercussão em Juiz de Fora este ano não entrou
oficialmente nos dados de criminalidade violenta. Isso porque o Reds nº
807686, que registrou o assassinato da ex-professora Ana Esther
Scheffer, 78 anos, no Bairro São Pedro, foi classificado como encontro
de cadáver. Chama atenção que a própria ocorrência apontou o nome de um
dos suspeitos pela morte (ver fac-símile 1). A idosa foi encontrada com
uma televisão sobre o rosto. Os dois suspeitos foram presos pela Polícia
Civil menos de 24 horas após o crime. Além de matar a idosa, eles
roubaram joias, dinheiro e um cartão do banco.
No levantamento, a reportagem também encontrou dezenas de casos de
assalto a mão armada tipificados como extorsão. No dia 3 de abril, por
exemplo, três entregadores de bebida tiveram cerca de R$ 600 levados por
dois bandidos, enquanto os trabalhadores faziam uma entrega na Rua
Hortogamini dos Reis, na Vila Olavo Costa. No Reds nº 689905 (ver
fac-símile 2), o policial militar relata que um dos suspeitos de cometer
o crime "anunciou o assalto" e ordenou que os três entregassem todo o
dinheiro. Embora a própria ocorrência informe a ação do assalto, a
natureza do registro foi tipificada como extorsão.
Já no dia 11 de julho, uma funcionária de uma banca de jornal na Rua
Oscar Vidal, no Centro, foi rendida por um assaltante armado com
revólver. Apontando a arma para ela, o homem a obrigou a entregar todo o
dinheiro do caixa, cerca de R$ 2 mil, e fugiu. Desesperada, a jovem de
20 anos pegou o celular e ligou para a mãe, momento em que o assaltante
voltou e apontou a arma em direção ao rosto da funcionária, obrigando-a,
desta vez, a entregar o aparelho telefônico. Conforme o Reds nº 1420783
(ver fac-símile 3), o bandido "perguntou se ela queria morrer". O caso
foi tido oficialmente como extorsão, embora aproxime-se mais de um
assalto à mão armada.
Ainda em julho, desta vez no dia 14, um rapaz de 22 anos foi
violentamente atacado, na Rua A do Bairro Jardim Casablanca, na Cidade
Alta. Conforme o Reds nº 1446066 (ver fac-símile 4), a vítima foi
encaminhada desacordada ao HPS, "sendo diagnosticados afundamento de
crânio, edema cerebral, pneumoencéfalo, feridas corto-contusas no
maxilar e cabeça, e escoriações secundárias em todo o corpo, sendo
medicada e permanecendo internada na UTI em estado grave". O que seria
uma tentativa de homicídio foi tipificada como lesão corporal. A
gravidade das pancadas foi tanta que a vítima continuava internada no
HPS até o início deste mês.
Exemplos de equívocos se multiplicam
Os possíveis equívocos na classificação de ocorrências são
evidenciados quando os casos são encaminhados para a Polícia Civil, que
costuma corrigir a natureza do crime. No último dia 31 de julho, o corpo
de um homem de 26 anos foi encontrado queimado e enterrado em um
terreno no Bairro Sagrado Coração de Jesus, Zona Sul. Apesar de a
própria situação já sugerir um homicídio - uma pessoa, por si só, não
conseguiria colocar fogo em si mesma e depois se enterrar -, o caso foi
registrado como encontro de cadáver. A 1ª Delegacia Distrital tenta
descobrir a autoria do assassinato.
Em outro caso, registrado no dia 1º de agosto, um homem de 37 anos
agrediu violentamente a mulher, 21, no Parque Independência. A Delegacia
de Orientação e Proteção à Família abriu inquérito para apurar a
tentativa de homicídio, embora a ocorrência tenha sido registrada, pela
PM, como lesão corporal. A mesma natureza foi escolhida para classificar
outro crime registrado no mesmo dia: em processo de separação conjugal,
uma mulher de 23 ateou fogo na própria casa, com o marido dentro, em
Benfica, Zona Norte. Após o homem conseguir escapar, ela ainda conseguiu
jogar álcool no corpo do marido e novamente atear fogo.
Especialista alerta para indício de erro
A pedido da Tribuna, o coordenador do Centro de Pesquisa em Segurança
Pública (Cepesp) da PUC Minas e ex-secretário de Defesa Social Luis
Flávio Sapori analisou algumas ocorrências e concluiu que "são casos
flagrantes de maquiagem do Reds, especialmente aqueles envolvendo
extorsão, nítidos casos de roubos à mão armada". No início do ano, em
audiência pública na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), o
especialista já havia alertado os deputados estaduais da Comissão de
Segurança Pública e Direitos Humanos sobre os "indícios seríssimos" de
que as informações sobre a violência no estado estariam sendo
manipuladas. Sapori ainda sugeriu auditoria externa nos dados, o que foi
protocolado pelos parlamentares, mas ainda não ocorreu.
Na mesma audiência, o integrante da Associação dos Praças Policiais e
Bombeiros Militares de Minas (Aspra), Luiz Gonzaga Ribeiro, afirmou
categoricamente haver orientação dos comandantes para que os policiais
subnotificassem casos de violência. Os militares que se recusassem
recebiam processo disciplinar e tinham a avaliação de desempenho
prejudicada.
Procurada pela Tribuna, a Aspra diz que não tem mais recebido
informação de subnotificação. "Denúncias podem ser enviadas pelo e-mail
ouvidoria@aspra.org.br", recomenda o presidente da entidade, Raimundo
Nonato Meneses Araújo.
'Não há punições'
Conforme o comunicado da 4ª RPM, "não há registros de nosso
conhecimento, que comprovem alteração por meio de intervenções, sejam
elas do Centro de Operações (Copom) ou do oficial da Coordenação de
Policiamento da Unidade (CPU), e, em consequência, não foram levantadas
punições, devendo se deixar claro que qualquer notícia nesse sentido,
por imperioso compromisso com o princípio da transparência, deve ser
levado ao conhecimento deste comando, que determinará incontinente a
devida apuração para determinar responsabilidades e efetuar a devida
correição".
Por fim, a 4ªRPM alegou que "ao citar que o Índice de Criminalidade
Violenta (ICV) se vale para consolidação das estatísticas dos homicídios
(consumados e tentados), roubos, sequestros (consumados e tentados),
além dos latrocínios (homicídios seguidos de roubo), o registro inicial
da ocorrência não influi nos números: o resultado final parte do Centro
Integrado de Informações do Sistema de Defesa Social (Cinds), que une os
diferentes bancos de dados e elimina duplicidades e inconsistências.
Após análise dessas informações é que se tem a fonte oficial de
estatísticas de Minas Gerais".
FONTE: TRIBUNA DE MINAS
http://www.tribunademinas.com.br/cidade/pms-denunciam-maquiagem-de-bos-1.1142474