domingo, 8 de julho de 2012

Tecendo a liberdade

Roupas tricotadas por detentos de Juiz de Fora abastecem 11 países através da grife Doisélles

Por DANIELA ARBEX
De um lado, um grupo de 13 presos em regime fechado condenado a mais de mil anos de prisão. Do outro, a delicada arte do tricô transformada em peças exclusivas capazes de movimentar um mercado de luxo e beleza que tem na lã a sua matéria-prima. Difícil acreditar que algum fio fosse capaz de entrelaçar universos tão distintos. Não para a designer de moda, Raquell Guimarães, que tem o primeiro nome escrito assim mesmo com "dois éles", hoje marca da grife que exporta roupa para 11 países. Foi ela quem conseguiu enxergar oportunidade de negócio entre mundos que não se conheciam. Raquell, que em hebraico quer dizer ovelha, entrou na cadeia para ensinar criminosos a tricotar, porque precisava de produção para abastecer as coleções internacionais da Doisélles. Mas a primeira aula na penitenciária Ariosvaldo Campos Pires, em Juiz de Fora, tão longe do Centro Universitário Belas Artes, de São Paulo, onde ela iniciou a faculdade de moda, serviu para quebrar paradigmas. Foi atrás das grades, num local de formas brutas, que a designer descobriu sensibilidade e competência, justamente entre homens considerados sem talento para aprender e recomeçar.


Da prisão para o mundo

Essa improvável história de sucesso começou há quase quatro anos. Na verdade, bem antes, quando Raquell, hoje com 31 anos de idade, aprendeu a tricotar ainda criança com a avó materna. Como o ofício tornou-se parte da sua vida, a jovem universitária resolveu fazer todos os trabalhos de faculdade em tricô e crochê. Isso acabou chamando a atenção de muita gente. Quando a Associação Brasileira de Indústria Têxtil conheceu as peças da então estudante, Raquell ouviu pela primeira vez que tinha em mãos um produto pronto para ser exportado. "Monte uma coleção que nós vamos exportar isso para o mundo." A frase, dita por experts no negócio, soou como um desafio.
Apoiada pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos, Raquell foi levada para feiras internacionais de moda, onde teve a oportunidade de apresentar sua arte, ainda mais valorizada pela confecção manual. "Quando voltei da primeira feira internacional com o talão de pedidos cheio, pensei: quem vai produzir isso? Comecei a desenvolver um trabalho junto às tricoteiras e crocheteiras, mas tive vários problemas, porque me deparei com uma total falta de profissionalismo. Como o tricô e o crochê são prendas domésticas, as pessoas veem este ofício como hobby, geralmente feito por senhoras do lar. Percebi que tinha que levar isso para um lugar no qual as pessoas estivessem juntas e onde eu pudesse ensinar esse ofício. A princípio, queria trabalhar com alguma comunidade. Mas, conversando com o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal, o vereador Flávio Cheker, chegamos à ideia da penitenciária. Inicialmente, pensava em trabalhar com mulher, porque nem passava pela minha cabeça que homem fosse aprender a fazer tricô", confessa.
Em 2008, ao apresentar a proposta de parceria à direção da penitenciária, Raquell foi surpreendida por uma contraproposta. A diretora geral Ândrea Valeria Andries sugeriu que o projeto fosse desenvolvido junto aos homens. "Por que não? Já que estávamos dentro de uma penitenciária e íamos trabalhar com presos, por que não homens? Se era para quebrar paradigmas, decidi fazer isso de uma única vez", lembra Raquell. Foi assim que a designer entrou com as agulhas profissionais para dentro da cadeia pela primeira vez. O tamanho do material deixou Ândrea preocupada. "Era como se ela tivesse armado um pavilhão. Como entrar numa cadeia de regime fechado com esse material? Estive contra a diretoria de segurança, a própria Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi), o juiz. Disse que colocaria as agulhas para dentro e nada aconteceria. Comprei mesmo uma briga. Foi uma aposta, na qual eu paguei para ver", afirma Ândrea.
A diretora estava certa, embora o "nada vai acontecer" não tenha se confirmado. Tudo aconteceu lá dentro, tudo mesmo, aliás, de melhor. "Não entrei aqui para ressocializar, mas para produzir. No entanto, quando eu vi que a ressocialização era possível, me encantei. Cheguei com essas agulhas e, no primeiro nozinho que eles deram, vi que eles tinham uma coisa da sobrevivência que é a adaptação a qualquer serviço. Se chegasse aqui com um softwear da NASA, eles dariam conta. O milagre dessa história não é a ressocialização. O milagre maior é o ser humano provando que quando ele quer vira isso (diz mostrando um colete de tricô cuja peça foi pilotada pelos presos). Isso não só me impressiona, me emociona. A maior lição da minha vida foi essa: ver a capacidade de aprender de uma pessoa sem formação", salienta Raquell.

FONTE: TRIBUNA DE MINAS

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